sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Lágrimas de Saudade


As malas feitas olhavam as horas. As mãos conquistam-se mutuamente. Olhares de tenra saudade encontram-se. Sorrisos ligeiros disfarçam a tristeza. Os corpos juntam-se. Abraçam-se. Sentem-se. Amam-se. As testas juntam-se, aproximando os olhos lacrimosos da despedida. Os queixos encaixam nos ombros. Dançam a valsa silenciosa que os sentimentos despertam. Formam-se laços entrelaçados nas gargantas, um aperto no estômago. Lágrimas descem, de mãos dadas, pelas faces. Lábios aproximam-se como hímenes. Beijam-se apaixonadamente. Devoram os últimos segundos que teimam em correr. A melodia acaba. A hora chega. Amantes afastam-se forçosamente. Um  pega nas malas, o outro observa. Olham-se uma última vez em nome da incerteza de um novo reencontro. Aragens frias arrepiam a pele. Lágrimas enchem os olhares trocados. A porta é aberta. Um vulto infeliz sai, carregado, por esta, fechando-a. O outro vulto desconsolado corre à janela. Esconde-se nos cortinados brancos. Um carro acorda. Resmunga. Corre pela rua deixando só aquele vulto solitário, chorando a nostalgia do momento. Vira-se. Olha o chão escuro atravessado por um tapete. Havia algo caído. Um postal. Agarrou-o e leu-o. Dizia “ Amo-te João”.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Malvado Despertador

Dez horas da manhã. O despertador tocava teimosamente pela segunda vez. Os meus braços, como o resto do corpo, afundavam, pesados, nos lençóis brancos e perfumados. As minhas pestanas largavam, chorosas, as suas parceiras. Olhei para o tecto. Não o reconheci. Onde estava eu? Olhei de um lado ao outro do quarto. O rosa bebé vindo das paredes tranquilizavam-me. Sentei-me, enrolado, na cama. As macias e delicadas madeiras arrefeciam-me os pés. Olhei para o lado. Dançando em cima do despertador, estava uma doce e repetitiva bailarina de ballet. Nada daquilo me era familiar. Definitivamente. Levantei-me, cambaleando, junto à cama. Dirigi-me à luz que me espreitava, curiosa, pela greta da porta. No exterior do quarto, um lustre cristalino se opunha à minha pessoa. Fiquei ofuscado pela luz brilhante que me atacava os olhos enquanto descia as escadas que abriam os braços à medida que me aproximava da mesa imponente, quase monárquica, deixada na entrada da casa. Procurei algo que me guiasse. Uma luz. Uma voz. Um cheiro. Em vez disso, ouvi um som. Um som de água que escorria infinitamente para um local por mim desconhecido. Segui o som. A curiosidade e a suspeita lutavam em mim. Onde estaria eu? O que faria ali? A porta estava encostada. Decidi entrar. Uma nuvem de vapor quente envolveu o meu aparecimento. Tentei encontrar algo. Aproximei-me da água e, subitamente, que visão de artista! Notei, de costas, uma rapariga. Deusa. Musa. Cabelos longos e escuros. Pele morena pulverizada de dourado. Curvas perfeitas e sedutoras. Quem seria ela? Quem seria aquela Afrodite latina que aparecia daquele quente nevoeiro? A sua perfeição infiltrava-se em mim. Puxava-me tudo o que em mim havia. A voz. Os suores. Os cheiros. O tacto. Deixou-me despido de todos os sentidos, ficando apenas e só focado naquela perfeição, da qual me aproximava. Toquei-lhe nas costas suaves e húmidas. Virou-se. Não me estranhou. Observei-a de novo. As curvas que antes descrevera como perfeitas e sedutoras, triplicaram a sua perfeição e sedução. Olhei-a nos olhos. Tentei obter uma resposta. Mas os seus olhos verdes selvagens calaram-me e os seus lábios carnudos paralisaram-me…

Dez horas da manhã. O despertador tocava teimosamente pela segunda vez. Abri os olhos. Observei o quarto. O cor-de-rosa relaxante transformara-se em quadros e posters. O despertador já não suportava uma bailarina, mas sim as inúmeras pancadas que lhe dava, rabugento, todas as manhãs. Da cozinha, ouvia a minha mãe chamar-me. E suspirei por estar em terreno conhecido e rui-me de curiosidade sobre todo aquele sonho. E que sonho!

João D'Hem


quarta-feira, 13 de julho de 2011

A Praia

As ondas massajavam-me os pés. O vento varria-me a cara. As minhas pernas guiavam-me pela fronteira de areal seco e molhado adormecida pelo som relaxante e refrescante do mar. A espuma, provavelmente branca, aproximava-se de mim, pé ante pé, fazendo-me cócegas e correndo para os braços de seu pai, o Mar. Alfredo corria lá longe, libertando-se do stress da cidade. Conseguia ouvir as suas patas rodopiando nas ondas. O seu ladrar feliz colava-me um sorriso na boca. Tínhamos pouco tempo um para o outro… Vivíamos na cidade. E a rotina não variava muito entre o escritório e o nosso apartamento. Não tinha muito tempo para passeá-lo. Ou melhor, ele não tinha muito tempo para me guiar para outros sítios. Decidi sentar-me. Dobrei as pernas, devagar, e apoiei as palmas das mãos na areia decorada com vestígios de conchas. Não se ouvia ninguém. Estava só, naquela praia. Teria eu reservado uma praia privada para aquela tarde, sem o saber? Sabia-me bem, estar ali. O mar é o melhor conselheiro que conheço. Funciona como uma pessoa! Como um irmão mais velho. Que nos acarinha, nos mima, nos abraça… mas que também se zanga connosco. Ao fundo, ouvia quatro pesadas patas a correr na minha direcção. Mantive-me intacta. Sabia quem era e o que ia fazer. Não valia a pena resistir. A personalidade de Alfredo era muito forte. Quando teimava em fazer algo… eu tinha que ceder. Como se tratasse de um negócio. Ele ajudava-me no dia-a-dia e eu alinhava nas brincadeiras dele. Tal como pensava, uma sombra de pelo molhado saltou para o meu colo, derrubando, a minha fraca figura, na areia. Deitou-se, apoiado as suas patas na minha barriga. Colocou a cabeça no meu peito. E pediu-me, em pensamento, que me deixasse levar… que sentisse tudo aquilo que me envolvia. Os sons. Os cheiros. As texturas. As sensações. O vento ia-me cobrindo de areia, como se o areal me abraçasse. Me aquecesse. As gaivotas voavam e pairavam no céu. Conseguia ouvir o bater das suas asas. E certamente observavam-me. Observavam-me e ao Alfredo. Observavam dois seres livres. Dois seres que se libertavam das ameaças dos alheios. Dois seres que viviam como um só, um dia de cada vez…

João D'Hem

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Os Silenciosos Barulhos Matinais

Tudo ali parecia calmamente adormecido. Os estrondos do silêncio saltavam de parede em parede. Os cortinados aveludados abraçavam-se ritmicamente e dançavam as valsas inglesas tocadas pelo gramofone antigo e estático que, quando acordava, se sentava junto à janela e, ao fim das tardes solarengas, quando o Sol se punha, se arrumava nos armários trabalhados e maciços. Os cadeirões idosos e largos respiravam de braços abertos o ar fresco e matinal. As duas portas, conversavam através de “rugidinhos” fracos, mas persistentes. O esverdeado dos teus olhos escorregava pelo quadro para ti pintado, através do chão, já gasto, até à luz longínqua e bela que, sem pedir licença, entrava em todas as janelas lisboetas. Por toda a casa havia vestígios claros de um crime bem cometido. Ainda conseguia ver e lembrar todos os beijos doces e selvagens, todos os gestos verdadeiros e delicados. A melodia dos teus leves e apressados passos ainda chegava com a brisa. O pesadelo da tua ida destruía meus sonhos futuros com a incerteza doida e gigantesca que rondava o meu corpo. Os copos divertidos e partidos permaneciam banhados em champanhe, deitados no chão, mostrando a sua madrugadora preguiça. Preguiçoso também eu estava. Ou melhor, preso a memórias que me puxavam para aquela dormência. A luz das oito gritava-me. Agarrava-me bruscamente pelos braços e pés. Tive que ceder. Sentei-me junto àquelas coscuvilheiras janelas que todas as conversas ouviam. Os barcos ao fundo, no Tejo, acenavam-me. Os pássaros cantavam os bons dias. A cidade acordava e eu assistia. Assistia, cheirava e ria. Assistia aos movimentos dançantes da luz dentro da sala. Cheirava o rasto de perfume que deixaras. E ria por, mais um dia, poder assistir, cheirar e rir de novo…


João D´hem para AA

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Gato Bonifácio

Sentia o pó nas minhas patas. O vento pintava os mosaicos do pátio com folhas de cores quentes e caducas. A triste melancolia daquela quinta assobiava silêncios através das janelas velhas e destroçadas.

Ver aquele cenário fazia com que não quisesse viver mais nove vidas.

Fui entrando através daquelas portas nas salas que, agora, me pareciam vazias, despidas, gigantescas. Os cortinados de veludo vermelho dançavam as valsas das almas já desaparecidas. As cadeiras de madeira maciça, onde costumava amolar as minhas unhas, enchiam-se, agora, de um manto branco feito artesanalmente de pó velho e teias de aranha. Das carpetes chegavam odores de outros gatos que vieram, certamente, à procura de ratos também eles sumidos. Os vultos chamavam por mim sentados nos degraus da escada. Não conseguia perceber de quem eram. A minha vista já estava cansada. Prossegui através daquela passadeira vermelha com riscas douradas de tecido inglês, eu acho. Já não me lembro bem. Recordo-me de ter sido elogiada como a mais cara, bela e original da mercadoria trazida de terras londrinas. As minhas patas redondas, idosas e calejadas ficavam desenhadas no fundo encarnado e empoeirado da carpete.

Sentei-me na varanda principal. Como eu gostava daquela varanda! Era antiga, romântica, bela, segura. Era nela que passava as noites de Janeiro e Fevereiro enquanto observava as madamesde cauda escovada e arrebitada que desfilavam estupendamente pelos muros velhos e floridos daquelas quintarolas e quintais, fazendo as delícias dos olhos de outros D. Bonifácios de Calatrava como eu.

Vista de cima aquela vivenda era ainda mais sonâmbula. As árvores adormecidas apoiavam os seus pescoços velhos e secos nas telhas despedaçadas da casa, destapando seus pés calçados sob as lajes feridas e golpeadas do pátio. As roseiras abriam os braços aos céus zangados e cinzentos, trepando pelas paredes descascadas de cor.

Voltei-me para dentro. Entrei no salão. Parecia uma sala fantasma, acabada de sair de um romance trágico como aqueles que o dono me lia e queria que eu escutasse, mesmo que fosse com um olho aberto e outro conquistado por um sono aterrador. Junto à chaminé lá estava a minha alcofa. O tecido roxo vivo estava tão velho quanto eu. Também lhe tinham crescido alguns cabelos brancos. Que confortável era aquela alcofa! Quando me ofereceram aquele tecido de bom descanso, nele descobri gravado o meu nome, Bonifácio. Acho que o dono sempre entendeu o ar nada satisfeito que eu fazia quando me chamavam pelo nome. Por isso tentou emendar o seu erro ao longo dos anos.

A luz entrava agora pelas cortinas esfarrapadas, anunciando a sua demorada extinção. Deitei-me, por fim, na minha alcofa. Pressenti algo à minha volta. Vozes. Movimentos. Energias. Não me apeteceu abrir os olhos. Tudo estava novo. A sala nova, nobre, limpa e bela que conhecera voltara. Levantei-me da alcofa. Dirigi-me, como sempre, à cozinha, mas desta vez de uma forma diferente. Estava a flutuar! Eu estava a flutuar! Tudo à minha volta estava ressuscitado. Eu estava um D. Bonifácio de Calatrava de novo. As madames chamavam-me lá fora. Os pássaros já não gozavam comigo e, ao fundo da sala, dois olhos acompanhados de uma barba sorridente admiravam-me ao longe.
 
João D'Hem

O desaparecimento do mundo

O céu continuava cinzento. As nuvens permaneciam condensadas, escondendo o sol. O vento apenas trazia o ruído silencioso das almas que começavam a desaparecer nas curvas redondas das nuvens. O chão caíra sob os meus pés. A minha família, os meus amigos foram com ele. As gaivotas procuravam o mar, os pardais tentavam encontrar as árvores. Mas onde estava o meu mundo? Era o que eu pensava. Ou melhor, onde estava eu? A minha camisola começava a rasgar-se. Tinham passado dois dias desde que o Mundo desaparecera, e eu permanecia ali. Seguro por um ferro que sustentava o meu peso e que rasgando a minha roupa me mantinha longe do buraco negro e profundo que todo o Mundo engolira. Cheguei a pensar se o melhor seria ficar ali, quieto, ou simplesmente desistir de uma tentativa falhada de sobreviver. Ainda se houvesse alguém para me ajudar. Alguém que conseguisse puxar aquele ferro sem me deixar cair. Mas quem? Em todo o tempo que ali estive nunca vi vivalma naquele local. Hoje, posso até dizer que nunca desejei tanto o meu trabalho stressante e o meu ignorante patrão. Comecei a desesperar. O silêncio começava a provocar em mim algo que ainda hoje não consigo explicar. Decidi apenas deixar o meu destino a Deus e adormecer. Cair ou ficar pendurado ficaria, a partir daquele momento, ao critério de Deus.


Durante um dos meus sonhos, comecei a ouvir uns ruídos. Seria imaginação, loucura ou verdade? Decidi abrir os olhos. De repente senti tremores no ferro que me sustentava. Aí pensei que era o meu fim. Percebi que estava a ser puxado, mas preferi fechar os olhos.


Quando senti terra sob as minhas mãos, abri os olhos e o meu sorriso surgiu de imediato no momento em que percebi que ele estava vivo e continuava com quatro patas...


João D'Hem

Diário de Bordo

Diário de bordo



Querido Diário,


Mais um dia em que passo nas ruas desta cidade. Não imaginas como isto é! A sede, o calor, a fome… são algo que já não consigo suportar. Percorro estas ruelas sem destino. A esperança de voltar ao meu país, ao meu Mundo, à minha pátria, ao meu domínio começa a desaparecer. Estou sozinho. Os homens olham-me com desconfiança. As mulheres desviam os olhares. Os cães ignoram-me. E até as cobras, que rastejam nesta terra como eu, desaparecem assim que me pressentem.

Será injusto um homem lutar pela sua pátria? Será tão maléfico o acto de querer ser português? Responde-me, diário! Desculpa. Não tens culpa do que me acontece. Mas, sinceramente, começo a pensar que os que lutam pelo que querem, de forma leal, não são sagrados salvadores. São, sim, julgados pelo destino de forma carrasca.

Sinto-me sujo. Desprezível. Maltratado. Quando choro as minhas lágrimas marcam-me a cara como azulejos pintados de castanho. Sinto a sua falta. Sinto a falta de Guiomar. Dos seus braços. Do seu sorriso. Do seu cheiro. Todos os dias me lembro da promessa que lhe fiz. O pensamento de não a cumprir corrói-me constantemente. Como estará ela? Ainda viverá na nossa casa, no nosso lar? Chorará ela todos os dias por não me ter junto dela? O quanto eu gostava que o destino me levasse para lá! Não importava como, desde que lá estivesse, abraçado ao seu peito.

Tenho medo, sabes? Tenho medo de não a tornar a ver…de não tornar a senti-la nos meus braços.

Enfim… Por hoje já chega de escrever. Agora vou continuar a minha caminhada penosa para mim e invisível para os demais.


Até breve, se Deus quiser.



 João D'Hem